Um pouso na região Amazônica

Museu do Amanhã
4 min readApr 22, 2024

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Sobre memória e identidade em Canaã dos Carajás (PA), a cidade que mais cresceu no Brasil entre 2010 e 2022.

Por Amarílis Lage

Viagens não nos apresentam apenas a novas paisagens e monumentos. Viagens também nos apresentam a novas pessoas, e são elas que nos ajudam a perceber justamente aquilo que, à primeira vista, não se revela ao viajante: os hábitos, os saberes, as memórias e os sonhos que vivem naquele local.

Em uma viagem recente ao interior do Pará, pude aprender bastante com muita gente. E trouxe na bagagem as palavras que ouvi do Seu Francisco — praticamente uma aula de história. Nós nos conhecemos na inauguração da exposição “Fruturos — Tempos Amazônicos” em Canaã dos Carajás, uma cidade no interior do Pará, a 777 km da capital, Belém.

O evento dava início a mais uma fase da itinerância desta mostra, que foi exibida no Museu do Amanhã entre 2021 e 2022 e agora segue para quatro cidades. Além de Canaã, onde estreou no dia 10 de abril, “Fruturos” está em cartaz em São Luís, capital do Maranhão, desde março. As próximas paradas são em Parauapebas, também no interior do Pará, em julho, e em Belém, a partir de outubro.

Essa era a primeira vez que Seu Francisco visitava uma exposição — e, por coincidência, uma exposição cujo tema é o território onde ele vive e que conhece tão bem. Além de mostrar a imensa diversidade e a extrema relevância da Amazônia, “Fruturos” também aponta as consequências do modelo de desenvolvimento econômico adotado ao longo das últimas décadas e convida o público a pensar sobre os caminhos possíveis para que o futuro da região seja mais justo e sustentável.

Diante de um vídeo que mostra o impacto de transformações recentes e destaca que 20% da floresta original já foi degradada, Seu Francisco exclamou: “Eu vi tudo isso aí acontecer!”. Nascido no Maranhão, ele chegou à região de Canaã dos Carajás em 1979. Na época, tudo ali era floresta, lembra Seu Francisco. Mas o pai dele já pressentia preocupado, ao ver os rumos políticos e econômicos do país, que a paisagem ia mudar. “Vão derrubar tudo…”, dizia. Quarenta anos depois, Seu Francisco constata o acerto da previsão paterna: “Ele tinha razão, hoje em dia toda a terra que nossa família tinha virou pasto”.

Havia um tom de lamento em sua voz, mas que não se interprete isso como desânimo ou desesperança. Pois, enquanto assistia as imagens do vídeo, Seu Francisco concluiu, como quem fala consigo mesmo em voz alta: “Mas dá para mudar isso aí, viu. Dá para recuperar a floresta de novo, dá para deixar como era”.

Enquanto ouvia Seu Francisco, imaginei aquelas duas paisagens sobrepostas, a da floresta que ele conheceu no passado com a da floresta que ele espera que as próximas gerações possam ver, no futuro. E pensei no importante papel que a memória tem para alimentar nossos planos de regeneração. Pois, em oposição ao discurso de que “isso sempre foi assim”, mostra que outros cenários foram e são possíveis.

Mas nem todos os moradores da região trazem, como Seu Francisco, a memória desse passado e dessas transformações. Canaã dos Carajás foi a cidade que mais cresceu, proporcionalmente, ao longo da última década no Brasil. Num período de apenas 12 anos, a população da cidade aumentou 188,51%, passando de 26,7 mil habitantes em 2010 para 77.079 pessoas em 2022, segundo dados do IBGE. E apenas 12% dos moradores são nascidos e criados no município; boa parte da população vem do Maranhão, de Tocantins e de Goiás.

Esses dados ajudam a entender por que, ao longo dessa viagem, tantas pessoas comentaram que a exposição “Fruturos — Tempos Amazônicos” traz uma grande oportunidade para estimular a reflexão acerca da identidade local. Embora a cidade esteja na região amazônica, há quem identifique o território com a região Centro-Oeste. E vale lembrar que houve até um plebiscito, realizado em 2011, para consultar a população sobre a possibilidade de separar o Pará em três Estados: Pará, Carajás e Tapajós.

O que significa ser amazônida? E como o termo “amazônida” pode dar conta da vasta pluralidade social que existe na Amazônia? De que maneira a identidade de uma comunidade pode promover a preservação e/ou a transformação do território que habita? Como os fluxos migratórios influenciam aspectos ambientais — e são por eles influenciados? São questões como essas que emergem quando pensamos que a preservação dos biomas passa, claro, por fatores que são políticos e econômicos, mas também são culturais e simbólicos.

A exposição “Fruturos” não visa trazer respostas prontas para um tema tão complexo. Um de seus objetivos é contribuir para este debate, mostrando o quanto o território é diverso e como essa diversidade precisa ser contemplada quando se fala em um novo modelo de desenvolvimento para a região.

Por isso foi tão bom ouvir, tanto da equipe da Casa da Cultura de Canaã dos Carajás quanto dos visitantes, que a exposição promete ser um terreno fértil para uma conversa muito produtiva sobre memória, identidade e representatividade. Pois, assim como acontece em uma boa viagem, uma exposição também ganha outras camadas quando possibilita novos encontros, levando a conversas que dão acesso a outras vivências e sonhos. Como a que tive com Seu Francisco.

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